Bunkers cariocas: os abrigos antiaéreos ocultos nos subterrâneos do Rio construídos na 2ª Guerra Mundial

  • 03/08/2025
(Foto: Reprodução)
Uma placa em garagem no bairro do Flamengo sinaliza que ali havia um abrigo antiaéreo. Arquivo pessoal/ Leo Muniz via BBC Em uma manhã nublada em Copacabana, uma visita guiada ignorava os cartões-postais mais famosos do bairro carioca para observar edifícios dos anos 1940, demorando-se em suas características arquitetônicas, até culminar na atração mais aguardada do tour: a garagem de um prédio. No subterrâneo escuro da tradicional Galeria Menescal, entre dezenas de carros estacionados, o grupo de participantes se aglomerou em torno da arquiteta carioca Isabella Cavallero — seus olhos curiosos fitando as paredes, o chão, o teto e a planta baixa que ela mostrava em um tablet. Na tela, estava a cópia de um desenho de 1943, com manchas amareladas, indicando a disposição de um abrigo antiaéreo com espaço para 964 pessoas, incluindo 34 banheiros e uma subestação de luz, com transformadores próprios. Os visitantes olhavam em volta, buscando pistas do que há décadas não está mais ali. "Aqui havia uma parede que chegava até esse pilar robusto, que caracteriza esse espaço reforçado", dizia Cavallero, circulando e apontando ao redor do subsolo, onde só se viam carros e quartos operacionais do prédio. "E aqui era a entrada projetada do abrigo antiaéreo", indicou. "Infelizmente, esse espaço não tem nenhum elemento original mostrando que um dia foi um abrigo antiaéreo e que foi projetado para prevenir ataques de bomba." Abrigos antiaéreos, ou bunkers, foram construídos em dezenas de prédios no Brasil a partir de 1942, sobretudo no Rio de Janeiro. Impuseram-se depois que o país entrou na Segunda Guerra Mundial, temendo bombardeios das cidades costeiras e na então capital, que poderiam vir do céu ou do mar. Cavallero, 28 anos, vem resgatando essa história desde 2022 e já mapeou 46 prédios com bunkers no Rio (um deles foi projetado, mas nunca construído). A arquiteta organizou uma visita guiada para mostrar alguns deles, atraindo cariocas que se surpreendem com uma faceta urbana desconhecida. A maioria desses bunkers está em Copacabana, mas a arquiteta já registrou locais também no Centro, Ipanema, Humaitá e Flamengo. A Galeria Menescal, icônico edifício comercial e residencial tombado desde 2007, tem o maior abrigo de que se tem notícia até hoje em prédios do Rio — mas quem desce ao seu subsolo não tem qualquer pista desse passado. A galeria Menescal é um marco da arquitetura Art Déco de Copacabana Como na maioria dos casos, o antigo bunker virou uma simples garagem. "A gente tem a tendência de olhar mais para a superfície da cidade, mas tem muitas partes da nossa história que se escondem embaixo dos nossos pés", diz Cavallero. "Foi isso que eu resolvi focar na minha pesquisa." O síndico da Galeria Menescal, Klaus Scheyer Junior, diz à BBC News Brasil que não há planos de colocar alguma placa ou algum outro tipo de comunicação sobre a história do bunker na garagem, pois provavelmente algo do tipo ficaria coberta de fuligem. Mas há uma alternativa sendo estudada. "Gostaríamos de colocar um QR code na entrada da galeria para que as pessoas possam acessar as fotos e conhecer essa história, que está tendo tanta repercussão hoje", diz Scheyer Junior, acrescentando que, na área comercial da galeria, as lojas estão sendo obrigadas gradualmente a retomar o projeto original dos anos 1940. O Brasil entra em guerra Olhar para essa camada subterrânea da história ajuda a resgatar os impactos da Segunda Guerra Mundial no Brasil e a maneira como a ditadura de Getúlio Vargas lidou com o conflito, sob forte censura à imprensa e falta de liberdade de expressão. A guerra eclodiu em 1939, durante o Estado Novo. Vargas nutria simpatia pelos governos nazifascistas, mas manteve postura de neutralidade nos primeiros anos — o que se tornou insustentável à medida que o conflito avançou. Bombardeios sucessivos de navios brasileiros no Oceano Atlântico por submarinos do Eixo — liderado por Alemanha, Itália e Japão — levaram o Brasil a romper relações diplomáticas com o bloco em janeiro de 1942. O país entrou de fato na guerra em 22 de agosto do mesmo ano, logo após seis navios brasileiros serem bombardeados pelo mesmo submarino alemão em uma semana. O Brasil acabou enviando 25 mil soldados da Força Expedicionária Brasileira para lutar na Europa. "Assim que o Brasil declarou guerra contra a Alemanha, havia essa ameaça constante de bombardeios nas cidades costeiras brasileiras, principalmente no Rio", diz o escritor e jornalista Ruy Castro à BBC News Brasil. Em seu novo livro, Trincheira Tropical (Companhia das Letras), Castro destrincha os impactos do conflito na vida política e cotidiana no Rio. O navio-transporte General Meigs chegando de volta ao Rio com homens do primeiro-escalão da FEB Arquivo Nacional via BBC O escritor resgata, por exemplo, a atuação de centenas de espiões alemães na cidade e os protestos de rua que eclodiram apesar da ditadura, pressionando Vargas a se juntar aos Aliados — formados por Reino Unido, União Soviética e Estados Unidos, entre vários outros países. A obrigação de construir abrigos e trincheiras contra eventuais ataques foi parte de um pacote assinado por Vargas logo após romper relações com o Eixo. O decreto-lei 4.098 (6/02/1942) instituiu "os serviços de defesa passiva antiaérea", com uma série de medidas e obrigações para a população a se defender. "Havia campanhas monumentais de panfletos distribuídos pela cidade, lidos nas rádios, ensinando o que fazer em caso de ataque, e criando um sistema de sirenes para alertar do risco", conta Castro. A norma ditava a obrigação de respeitar alarmes, ordens de apagar luzes e interdições de ir e vir. Em setembro de 1942, o jornal A Noite anunciou 'primeiro abrigo antiaéreo' do Rio, no Leme. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil via BBC Foram projetados abrigos públicos, como o novo Túnel do Leme (uma das galerias do Túnel Novo, que até hoje liga Copacabana e Botafogo). Seus 100 metros perfurados em "rocha viva" poderiam ser adaptados "a qualquer momento" como o "primeiro abrigo antiaéreo" da cidade, destacou o jornal A Noite após vistoria de autoridades em setembro de 1942: "Durante a inspeção foi dado um tiro de dinamite de 150 quilos dentro do túnel. Foram fortíssimos a explosão e o estampido, dando margem a que se pudesse avaliar o que será a queda de uma bomba lançada por avião." O decreto-lei estabeleceu novas regras para construções de imóveis: dali em diante, edifícios de mais de cinco pavimentos ou com áreas construídas superiores a 1.200 metros quadrados deveriam ter abrigos antiaéreos. "Os abrigos antiaéreos, os bunkers, eram feitos para abrigar as famílias todas de um prédio. Era um subterrâneo com espaço para cozinha, para banheiro e para dormir. Supunha-se que um ataque pudesse durar vários dias, uma semana, e essas famílias teriam que ficar lá embaixo", explica Castro, lembrando que a pronúncia correta é "búnker", e não "bãnker", já que a palavra vem do alemão. "Dezenas e dezenas de prédios com abrigos foram construídos no Rio e também em outras cidades litorâneas, que eram as mais vulneráveis aos ataques. Que, é claro, nunca aconteceram", diz o escritor. "Com o fim da guerra, a necessidade de um bunker desapareceu e esses abrigos foram convertidos em garagem." 'Uma garage para 70 carros e o maior abrigo antiaéreo já aprovado' Um anúncio imobiliário alardeando um abrigo antiaéreo entre os atrativos de um prédio chamou atenção da arquiteta Isabella Cavallero em 2022, quando ela pesquisava espaços subterrâneos do Rio para seu trabalho de conclusão de curso em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela começou a buscar outros anúncios em jornais como o Correio da Manhã e A Noite com a expressão e de início encontrou cinco prédios no Rio. Retomou a pesquisa no ano passado e vem mapeando dezenas desses abrigos no site Bunker Paradies. Ela criou este projeto em parceria com a antropóloga colombiana Ana Catalina Correa, que estuda bunkers construídos pelo narcotráfico em seu país. Cavallero lembra que a Segunda Guerra Mundial coincidiu com um período de plena efervescência imobiliária no Rio, com a cidade se expandindo do Centro para os bairros costeiros de Copacabana, Ipanema e Leblon, na zona sul. Em meio ao temor de bombardeios da cidade, os bunkers passaram a ser um objeto do desejo. "Nos anos 1940, Copacabana era o principal lugar para onde a capital estava se expandindo. A intenção era atrair a alta elite da sociedade carioca para o bairro. Esses edifícios foram construídos em estilo art déco, com detalhes em metal e em dourado nas fachadas, entradas monumentais de mármore e outros elementos para evocar o luxo", diz Cavallero. "E esses abrigos surgiram com uma forma de torná-los ainda mais exclusivos." Classificado da época mostra abrigo antiaéreo como um dos atributos de apartamento em Copacabana Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil via BBC Em um dos anúncios da época, por exemplo, um abrigo antiaéreo é listado ao lado de destaques como "living com 28m²", "sala de jantar com 28m²", "dois banheiros ingleses de luxo e cor", "2 bons quartos de empregados" e "garage". O Brasil estava se desenvolvendo industrialmente, e os abrigos fizeram parte do processo de modernização da cidade. Os bunkers precisavam ser aprovados pelo Serviço de Defesa Passiva Antiaérea, criado depois de o Brasil entrar na guerra em 1942. No livro Alerta! – Catecismo da Defesa Passiva Civil Antiaérea, o então chefe do serviço, coronel Orozimbo Martins Pereira, descrevia como deveriam ser construídos. Os abrigos em edifícios residenciais deveriam ter lajes de concreto armado que suportariam impacto de 1.500 kg, ou de 1.000 kg/m². Mas a responsabilidade também era jogada para a sociedade civil: os cidadãos eram orientados a construir trincheiras em seus quintais. Classificado anuncia que Edifício Menescal tem 'uma garage para 70 carros e o maior abrigo anti-aéreo já aprovado pelo Serviço Nacional de Defesa Civil' Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil via BBC Orozimbo detalhou a construção de "trincheiras-abrigos cobertas", uma espécie de túnel em zigue-zague com uma escada de acesso, paredes espessas e coberturas reforçadas para suportar sopros de bomba e estilhaços. "Ninguém deve esperar tudo da ação tutelar do Governo", escreveu Orozimbo. "O que cada cidadão compete fazer é – colaborar resolutamente com ele, ao mesmo tempo que trata da sua própria proteção." Descobertas urbanas Quem passa pela icônica Galeria Menescal, em Copacabana, provavelmente não sabe que ali serviu como abrigo antiaéreo. Lucas Cerejo via BBC Apesar de a maioria ser carioca, os visitantes que participaram do tour de bunkers acompanhado pela BBC News Brasil não tinham ideia da existência dos abrigos da guerra até saber da pesquisa de Isabella Cavallero. "Achei muito curioso ter isso no Rio de Janeiro, não imaginava que tinha havido esses reflexos da guerra aqui", comentou a jornalista Fernanda Castelo Branco, que já havia visitado outros lugares marcados pela Segunda Guerra Mundial na Europa, como bunkers e estações de metrô convertidas em abrigos. Miguel Doldan, que faz parte de um grupo de reencenação histórica sobre a Segunda Guerra, o Verde Oliva, destacou o impacto de ver prédios pelos quais passa todo dia com um outro olhar, sabendo que fizeram parte daquele momento histórico. Para ele, entrar na garagem da Galeria Menescal e imaginar um bunker ali o aproximou da experiência das pessoas na época. "É claro que não sentimos o risco que aquelas pessoas corriam. Mas encostar naquelas paredes me fez pensar no que elas passaram e me [fez] sentir mais perto de um conflito que às vezes parece um pouco distante", diz Doldan, que fez o passeio vestido como um soldado da infantaria americana, carregando um kit de primeiros socorros original e a réplica de um cantil da época. Conexão Rio-Berlim Um intercâmbio em Berlim durante a graduação chamou a atenção de Cavallero para a força com que a memória da Segunda Guerra Mundial — "esse período brutal da história alemã", ela diz — está presente no espaço público da cidade, repleta de monumentos, placas, museus, visitas a bunkers e rotas de fuga para lembrar o passado nazista. Isso a instigou a estudar as memórias ocultas do período nos subterrâneos do Rio e a realizar intervenções artísticas sobre os desenhos desses espaços. Neste ano, sua pesquisa ganhou um tremendo impulso depois de seu primeiro tour pelos bunkers do Rio, graças a um vídeo que uma participante postou no TikTok. O conteúdo viralizou, e Cavallero aproveitou para ir além. "O vídeo ficou superfamoso e vi que as pessoas ficaram muito interessadas no tema. Isso me motivou a gravar novos vídeos pedindo ajuda para acessar os edifícios e seus desenhos arquitetônicos", conta ela. Isabella Cavallero afirma que apoio da população carioca com o projeto a deixa 'muito animada'. Lucas Cerejo via BBC Até então, a arquiteta dependia da boa vontade de porteiros para contatar os síndicos de cada prédio e obter deles autorização para acessar e fotografar as plantas baixas dos prédios no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro — um processo lento, dificultado pelo fato de ela ser pesquisadora autônoma, sem apoio institucional. No dia a dia, Cavallero trabalha com documentação de edifícios históricos e modelagem 3D de edificações em Berlim. "A partir das postagens, muitas pessoas me escreveram, se oferecendo para mostrar os espaços subterrâneos de seus prédios e falando de endereços que eu ainda não tinha mapeado", diz ela, que também passou a ter apoio do gabinete do vereador Flávio Valle (PSD), o que ajudou no acesso a arquivos públicos. "Estou tendo muito apoio da população do Rio para fazer esse projeto, o que me deixa muito animada", diz Cavallero. A arquiteta vibrou quando a moradora de um prédio no Flamengo enviou uma foto da placa afixada no subterrâneo de seu prédio, com a frase "Abrigo antiaéreo adaptado para garagem em 1949", ao lado de fotos de aviões da Segunda Guerra. "É isso que eu gostaria que existisse nos subsolos — ao menos uma marcação indicando esse período da história", diz a arquiteta. Para ela, jogar luz sobre esses rastros do passado é uma forma de resgatar memórias da guerra, da luta contra o fascismo e da ditadura Vargas, evitando seu apagamento do consciente coletivo.

FONTE: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/08/03/bunkers-cariocas-os-abrigos-antiaereos-ocultos-nos-subterraneos-do-rio-construidos-na-2a-guerra-mundial.ghtml


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